André Bueno

 

O QUE NÃO FAZER PARA SER UM MAU PROFESSOR, DE ACORDO COM ALGUNS PENSADORES CHINESES

 

O Mestre disse: "Quem sairia de uma casa sem usar a porta? Por que as pessoas insistem em andar fora do Caminho?"(Lunyu, 6)

 

Usualmente, encontramos dicas de como alguém pode se tornar um bom professor. Tais conselhos são guiados por orientações teóricas das mais diversas; e nos permitem supor que naturalmente podemos nos tornar péssimos profissionais do ensino, mesmo que não saibamos. Como de costume, gosto de propor exercícios de reflexão a partir de uma perspectiva sinológica, recorrendo à experiência de alguns autores chineses sobre a arte de ensinar para percebemos um contraponto. Assim, pretendi construir um texto sobre o que não fazer para ser um mau professor, invocando Confúcio e outros autores chineses. Contudo, quero iniciar esse texto com um deslocamento, um desvio no tempo e no espaço que torne nossa experiência intelectual um debate prazeroso de ideias.


No Conto ficcional de Machado de Assis, “O Segredo do Bonzo”, Patimau e Languru são dois discípulos pilantras do Mestre Pomada, encontrados por Fernão Mendes Pinto, Diogo Meireles e outros viajantes portugueses, em um imaginário país asiático lá pelos idos do século 16. Patimau era o criador de uma teoria belíssima, porém absolutamente mentirosa, de que os grilos surgiam de uma conjunção de ar, folhas de coqueiro e a lua nova. Intrigados, Diogo e seus colegas buscam conhecer o mestre fundador de uma doutrina tão peculiar, e o encontram na figura de Pomada, que assim lhes apresenta sua forma de pensar:

 

“- Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber, têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de todo contacto com outros homens, é como se eles não existissem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem espectador. Um dia, estando a cuidar nestas coisas, considerei que, para o fim de alumiar um pouco o entendimento, tinha consumido os meus longos anos, e, aliás, nada chegaria a valer sem a existência de outros homens que me vissem e honrassem; então cogitei se não haveria um modo de obter o mesmo efeito, poupando tais trabalhos, e esse dia posso agora dizer que foi o da regeneração dos homens, pois me deu a doutrina salvadora. [...] Mal podeis adivinhar o que me deu ideia da nova doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa insigne pedra tão luminosa que, posta no cabeço de uma montanha ou no píncaro de uma torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprio olhos. Considerei o caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente. Tão depressa fiz este achado especulativo, como dei graças a Deus do favor especial, e determinei-me a verificá-lo por experiências; o que alcancei, em mais de um caso, que não relato, por vos não tomar o tempo. Para compreender a eficácia do meu sistema, basta advertir que os grilos não podem nascer do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova, e por outro lado, o princípio da vida futura não está em uma certa gota de sangue de vaca; mas Patimau e Languru, varões astutos, com tal arte souberam meter estas duas ideias no ânimo da multidão, que hoje desfrutam a nomeada de grandes físicos e maiores filósofos, e têm consigo pessoas capazes de dar a vida por eles”.


A ironia de Machado é absolutamente precisa e fortuita. No que toca o mundo da Sinologia – e mais extensivamente, o acadêmico e a arte de ensinar – a construção das afirmativas e posições pouco tem a ver, muitas vezes, com algum tipo de fundamentação teórica ou mesmo experiencial. Em geral, as pessoas gostam de afirmar coisas que não podem provar, mas sabem que isso faz pouca diferença para quem escuta. De fato, se há realmente algo que engrandece a vida dos pseudoestudiosos é o que eles afirmam ter feito (ou fazem), ainda que isso diga ou signifique muito pouco. Mas, como disse Confúcio, “postos, porém, diante de uma armadilha, não sabem o que fazer”, a não ser...criar novas histórias!

 

No Shiji de Sima Qian, aparece uma história em que o sábio Confúcio, aflito por sua doutrina ser amplamente ignorada pelo vulgo, pergunta aos seus discípulos a razão disso:

 

“O grupo de Confúcio não tinha meios de escapar, e os mantimentos começaram a escassear; muitos caíram de cama, enfermos; Confúcio, entretanto, continuava a ler, e a cantar acompanhando-se com um instrumento de cordas, sem alterar-se. Com evidente raiva, Zilu dirigiu-se ao Mestre: "Também uma pessoa educada se vê em dificuldades, às vezes?" E Confúcio replicou: "Decerto, mas só o homem vulgar é que, ao se ver em dificuldades, perde a sua personalidade e comete toda sorte de tolices." Zigong ficou visivelmente impressionado com essas palavras do Mestre, e ele continuou, noutro tom: "Ah Zi, tu imaginas que eu aprendi uma porção de coisas e as tenho de cor?" E Zigong: "Imagino, pois não é verdade?" Confúcio disse: "Não, o que eu tenho realmente é uma linha mestra que passa através de todos os meus conhecimentos".

 

Como acontece em muitas das explicações dadas pelos sábios, os discípulos não entenderam muito bem o que significava a ideia de um princípio ético que permeasse a doutrina de Confúcio. Novamente, usando da analogia, o velho mestre chamou seus alunos queridos para explicar o sentido teórico do que fazia:

 

“Confúcio ficou então sabendo que seus discípulos estavam zangados e com o desapontamento na alma; chamou Zilu para dentro e o interrogou: "Está no Livro dos poemas: ‘Nem búfalos nem tigres, que erram pelo deserto’". [Uma comparação com eles próprios]. Achas errado o que eu ensino? Como é que eu me coloco, nesta situação?" Zilu respondeu: "Talvez não sejamos bastante grandes e não tenhamos sabido granjear a confiança do povo. Talvez não sejamos bastante sábios e o povo não queira seguir nossos conselhos." Confúcio falou: "Pois é assim? Ah Lu, se os grandes homens pudessem granjear sempre a confiança do povo, por que iriam Boyi e Shuxi para as montanhas, morrer de fome? Se os sábios sempre tivessem os seus conselhos seguidos pelo povo, por que o Príncipe Pikan haveria de suicidar-se?" Zilu saiu e Zigong entrou, e Confúcio disse: "Ah Zi, está no Livro dos Poemas: "Nem búfalos nem tigres, que erram pelo deserto." Há erro em meus ensinamentos? Como me coloco nesta situação?" Zikung respondeu: "Os ensinamentos do Mestre são demasiado grandiosos para o povo, e eis por que ele não os segue. Por que não baixais um pouco das vossas alturas?" Confúcio falou: "Ah Zi, o bom lavrador semeia o campo, mas não pode garantir a safra, e o bom artesão esmera-se no trabalho, mas não pode garantir que agradará a seus fregueses. Eis que não tendes mais interesse em cultivar a vós próprios, senão em serdes aceitos pelo povo ... receio que não estejais buscando para vós mesmos o padrão mais elevado”. Zigong saiu, entrou Yan Hui e Confúcio lhe disse: "Ah Hui, está no Livro dos Poemas: "Nem búfalos nem tigres, que erram pelo deserto." Há erro no que ensino? Como me coloco nesta situação?" E Yan Hui falou: "Os ensinamentos do Mestre são tão grandiosos... por isto o mundo não os pode adotar. Não obstante, deveis fazer o possível para divulgar vossas ideias. Que vos importa se elas não são aceitas? O simples fato de não as aceitarem prova que sois realmente uma pessoa superior. Se a verdade não é cultivada por nós, a vergonha é nossa; mas se nos dedicamos exaustivamente à pregação de uma ordem moral e ela não é seguida pelo povo, a vergonha é dos que estão no poder. Que vos importa isso? O fato de não vos aceitarem mostra que sois um verdadeiro Educado". Confúcio ficou satisfeito e falou sorrindo: "Pois é assim? Ó filho de Yan, és um homem precioso, eu devia ser teu servo!".


Ora, o que Confúcio faz aqui é uma demonstração sublime de humildade; mas esta mesma humildade, em geral, é entendida como fraqueza ou submissão. Ainda que possamos oferecer o ensino, o acesso à educação, quem diz que as pessoas conseguem realmente compreender a dimensão disso? Quantos milhares de alunos nós encontramos absolutamente desinteressados de aprender algo, tão desejosos somente de um diploma que nada representa? Quantas centenas de docentes compreendem as necessidades dos discentes, mas lavam as mãos e dedicam-se somente a esperar seus salários e conspirar contra colegas por inveja, despeito ou divergência intelectual?

 

Precisamos então retomar o mestre Pomada, para entender o que se passa com muitos daqueles envolvidos na dura lida do ensino. Profissionais ruins precisam sempre de justificativas pra embasar seus fracassos. Eis a razão pela qual um farsante nunca abandona o hábito de fabricar histórias, posturas e imagens. E essa não é uma estratégia nova, mas aparece acompanhar a história da humanidade. É preciso constantemente maquiar fracassos como sucessos; assim como fazer com que a medida de uma carreira brilhante seja o quanto se ganha ou a fama que se alcança, sem uma preocupação exata do que se aprendeu na caminhada. Novamente, encontramos um bom exemplo de reflexão sobre isso na China. Han Yu, pensador confucionista da época Tang, conta-nos a história de um aluno que queria saber por que grandes sábios andavam em andrajos, se podiam ter tudo. O mestre respondeu-lhe brilhantemente:

 

“Uma manhã, o mestre do colégio imperial entrou na sala da universidade e dirigiu o seguinte discurso aos estudantes que se encontravam em seu curso:

-Toda obra se aperfeiçoa com dedicação e se arruína com a negligência. Assim mesmo, a conduta é cabal para a força da meditação, ainda que a desatenção a desencaminhe. [...] Em sua carreira de estudantes, vocês devem temer não poder aperfeiçoar vossas capacidades quanto seja possível, sem se preocupar se as autoridades não são suficientemente ilustradas. Assim mesmo, em vossos atos, deveis temer não poder levar a cabo todo o esforço necessário, sem preocupar-se se as autoridades não são justas...

Ainda não havia acabado de falar quando um estudante começou a rir e disse:

-Mestre, está gozando da nossa cara? Levei muito tempo seguindo seus ensinamentos. Sua boca vive recitando os textos canônicos que suas mãos folheiam sem cessar. Você vive pesquisando os autores clássicos, pondo sempre em relevo os pontos mais importantes das narrativas e destacando o sentido mais profundo dos discursos. Suas aspirações são muito amplas e as realizas perfeitamente, sem deixar de lado as grandes linhas ou os detalhes. Ao anoitecer segues trabalhando a luz de uma lamparina, e ao longo de horas você de esforça sem descanso. Realmente, se pode dizer que seu trabalho está feito. [...] Tens a cabeça calva e os dentes ruins; sua vida chega ao fim, e que bem você alcançou? Mas não sabes meditar sobre isso; ao contrário, acaba de dar-nos preceitos sobre a vida humana.

-‘Venha cá’, disse o mestre - Chegue bem perto e escute. Das grandes árvores se fazem as vigas, das pequenas os caibros. Colunas, trancas, fechaduras, tudo tem sua utilidade. Construir uma casa com eles é o trabalho do carpinteiro. [...] Elevar os inteligentes e eleger os capazes, conduzir hábeis e torpes, trazer os sagazes de mente ágil, criar heróis que tenham grande valor, medir os excessos e insuficiências para empregar a cada um em seu cargo que lhe convém se constitui no trabalho do Primeiro-ministro. Quanto a mim, professor, por mais aplicação que tenha mostrado em meu estudo, não tenho podido seguir a grande corrente de ideias; por abundantes que sejam minhas palavras, não tenho alcançado a real natureza das coisas; por mais refinado que seja meu estilo, não consegui alcançar nada útil; por melhor que seja minha conduta, não tenho feito nada para me destacar na multidão. [...] Olho os antigos para imitá-los. Apesar disso, o soberano não me pune e o primeiro ministro não me expulsa. Acaso sou mal afortunado? Se minhas ações provocam censuras, me dão renome também. O que eu mereceria, com minhas capacidades, seria engrossar a fila dos desempregados, depois de ter ocupado algum cargo sem importância. Assim, se você me examina se possuo ou não riquezas, se meu nível está alto ou baixo, esquecendo da justa medida a que me atenho, alegando os defeitos dos que obtiveram honras, será como criticar o carpinteiro que fez uma pilastra no lugar de uma coluna, ou de um médico que empregou um remédio ao invés de outro”.

 

Aquele que defende a via calcado numa sinceridade moral, pois, vive de um tal modo que é incompreensível para os que acreditam nas aparências. Ninguém pode entender como ou porque ele não tira proveito material ou social de suas conquistas pessoais. Aos olhos do vulgo, seu conhecimento parece pouco eficaz, e quanto mais o sábio estuda, mais ele percebe o quanto não sabe - enquanto os outros têm absoluta certeza de saber aquilo que não sabem.

 

Tais afirmações parecem dogmáticas, ainda que inspiradas em pensadores antigos. A constatação de sua veracidade só se pode dar, realmente, se aquele que busca o saber procurar entender o que NÃO aprendeu quando estudava com os mestres ou discípulos da opinião. Infelizmente, muitos nunca perceberão o que estava errado; outros tantos terão aquele sentimento de “fui enganado”, ou “devia ter feito diferente”, o que pode ser traduzido como arrependimento; mesmo sabendo disso, hão de manter as aparências; apenas uns poucos talvez percebam a diferença entre o saber real e o saber-de-aparência, mas ao fazê-lo, mesmo assim podem se surpreender e mudar de atitude, buscando o saber real, ou podem transformar-se em discípulos de Pomada!

 

Mas, para fazer um contraponto, encontramos um ensaio de Lin Yutang (presente na sua coletânea “Com Amor e Ironia”) intitulado “Yupuwei”, que poderia ser traduzido como “O que eu não faço”. Yutang baseou o título de seu ensaio no hábito que alguns escritores chineses tinham de nomear seus livros como apologias ou desculpas, e aproveitou o ensejo para declarar algumas das coisas que buscava não praticar como intelectual, ser humano e escritor. Bem, qual a relação disso com a academia, a Sinologia e o ensino? Se bem aproveitada a ocasião, o que desejo fazer aqui é uma relação de coisas que, creio eu, um profissional de ensino e pesquisador NUNCA deveria fazer, na minha opinião. As afirmações que se seguem, em grande parte, baseiam-se igualmente nos pensamentos de Confúcio, o professor que um dia pavimentou o caminho daquilo que pensamos ser a sabedoria.

 

O que não fazer para ser um mau professor

Não ser soberbo – pois quase tudo que aprendemos muda, um dia. O que sabemos agora há de ser outra coisa depois, e só o sábio entende que deve mudar quando necessário. Mas há um fio central que percorre a sabedoria... O Mestre disse: "Não te preocupes se as pessoas não reconhecem teus méritos; preocupa-te se não reconheceres os delas". (Lunyu, 1)

 

Não ser vaidoso – muitos pensam que o respeito se conquista por roupas ou posturas. Se há algo adequado para se usar, isso não mostra saber. O sábio é respeitoso, e só. O Mestre disse: "Conversa inteligente e modos afetados raramente são sinais de bondade". (Lunyu, 1) e O Mestre disse: "Um erudito coloca seu coração no Caminho; se ele se envergonha de suas roupas surradas e de seu alimento modesto, ele não merece ser escutado". (Lunyu, 4)

 

Não acobertar o erro – pois isso é dar falsa esperança ao estudante. Ele aprende que pode sempre errar porque será perdoado, e seu conhecimento se formará cheio de lacunas. Não se pode dar conhecimento a alguém, apenas fornecer os elementos para isso. O esforço, porém, é individual. O pior crime que alguém pode cometer e fazer crer que alguém está aprendendo quando não está. "Estudar sem pensar é fútil. Pensar sem estudar é perigoso". (Lunyu, 2)

 

Não ser parcial – pois ao contrário do que se pensa, os que mais pregam a moralidade são estritamente parciais, e somente favorecem os seus. Quando a “moralidade” é uma coberta para o erro, ela faz estragos terríveis. A verdadeira imparcialidade, se é que existe, é dar a todos o que precisam – ou, às vezes, o que querem. Este último recurso só vale quando não há muito mais a fazer, a não ser deixar que os errados se estrepem. O Mestre disse: "O educado considera mais o todo do que as partes. A pessoa pequena considera mais as partes do que o todo". (Lunyu, 2);  ‘O Mestre disse: "Um educado considera o que é justo; a pessoa pequena considera o que é vantajoso". (Lunyu, 4)

 

Não ser desleal – a lealdade não encobre o erro, ao contrário, ela é o meio sincero pelo qual se dissolvem os erros – ou as amizades, quando não há lealdade. Por isso, alguém que é fiel a sua causa o é até o limite, ainda que não se entenda as suas atitudes. "Examino a mim mesmo três vezes por dia. Ao intervir em favor dos outros, fui digno de confiança? Na relação com meus amigos, fui leal? Pratiquei o que aprendi?" (Lunyu,1)

 

Não ser pretensioso - a humildade real é o sentido do que fazemos. Aqueles que crêem saber, e por isso chacotam ou ofendem aos outros, já perderam os respeito por si mesmos. A ironia é o fino humor do sábio; a resistência é sua ação para mudar. A humildade consiste na preocupação intima em reconhecer seus erros e erradicá-los. Por isso um sábio pode ser humilde, mas não é subserviente; pode lutar, sem ser violento; pode submeter, sem ser detido com a morte. Pode ser Confúcio, Jesus, Buda, Gandhi ou Martin Luther king. O Mestre disse: "Riqueza e posição é o que toda pessoa almeja; no entanto, se a única maneira de obtê-las contraria seus princípios, ela deveria desistir de tal objetivo. Pobreza e mediocridade são o que todo mundo detesta; no entanto, se a única maneira de escapar delas contraria seus princípios, eles deveriam aceitar sua sina. Se uma pessoa educada abandona a humanidade, como poderá construir um nome para si? Nunca, nem por um momento, uma pessoa educada se afasta da humanidade; ela se agarra a humanidade em meio às provações e em meio às tribulações". (Lunyu, 4)

 

Não ser falso modesto - tão ruim quanto o soberbo é o falso humilde. Este pouco sabe, e defende sua ignorância com a intransigência. “Não ficar transtornado quando os próprios méritos são ignorados: não é isso a marca distintiva de uma pessoa educada?” (Lunyu, 1)

 

Não ser pedante ou bajulador – a verdadeira liberdade consiste em nunca depender da bajulação, e manter o seu direito de dizer a verdade, não importa que posição se ocupe. O Mestre disse: "Não te preocupes se não tens uma posição; preocupa-te caso não mereças uma posição. Não te preocupes se não fores famoso; preocupa-te caso não mereças ser famoso". (Lunyu, 4) pois ‘O Mestre disse a Zixia: "Sê uma pessoa culta e nobre, não um pedante vulgar"’. (Lunyu, 6)

 

Não ser.... - pois apenas não seja. Sendo algo, nunca poderemos ser outra coisa. O sábio se adapta, sem perder seu caráter. Todos querem ser algo - o sábio só deseja estar alguma coisa, mostrando que todas as perspectivas na vida podem mudar. E a mudança é o único principio que permanece. O Mestre disse: "Zilu, vou ensinar-te o que é o conhecimento. Tomar o que sabes pelo que sabes, e o que não sabes pelo que não sabes, isso é conhecimento". (Lunyu, 2)

 

Ao final, difícil não pensar nas palavras de Confúcio e de Han Yu e refletir o quanto eles permanecem atuais.: Ainda que eu digamos tudo isso, poucos escutarão. Mas, tal como uma arvore que dá seus frutos sem preocupar-se se alguém vai comê-los, assim também é o verdadeiro aprendizado até que ele seja descoberto. Não podemos ser Patimau ou Pomada, e viver da opinião. Se há um conhecimento, ele deve ser buscado... Ou esqueça-o!

 

Ran Qiu disse: "Não é que eu não goste do caminho do Mestre, mas não tenho a força para segui-lo". O Mestre disse: "Quem não tem a força pode sempre desistir no meio do caminho. Mas tu desistes antes de começar!". (Lunyu, 6)

 

Referências biográficas

André Bueno é Prof. Adj. História Oriental da UERJ.

 

Referências bibliográficas

Assis, Machado. ‘O segredo do bonzo’ in Papéis avulsos. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2011.

 

Bueno, André. EducArte – a educação chinesa na visão confucionista. Projeto Orientalismo, 2011.

 

Confúcio. Conversações. Trad. Anne Cheng. Lisboa: Estampa, 2000.

 

Han Yu in Margouliès, Geroges. Histoire de la littérature chinoise. Prose. Paris : Payot, 1949, chap. XIII, p.169-197.

 

Kaser, Pierre. «De l’utilité des maîtres», Impressions d’Extrême-Orient [En ligne], 13 | 2021, http://journals.openedition.org/ideo/2090

 

Lin Yutang. Com amor e ironia. Rio de Janeiro: Ponguetti, 1956.

 

Sima Qian. ‘Biografia de Confúcio do Shiji’ in Lin Yutang. Sabedoria de Confúcio. Rio de janeiro: José Olympio, 1958. Disponível em: http://sinografia.blogspot.com/p/a-biografia-de-confucio-por-sima-qian.html

10 comentários:

  1. João Guilherme Vieira Poiati13 de setembro de 2022 às 09:12

    Professor, gostaria de saber como "apenas não ser algo" se a profissão de professor adentra até nosso ambito pessoal e nos molda a nos comportarmos de certa forma.

    João Guilherme Vieira Poiati

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    1. Oi João, obrigado pela pergunta! Esse 'apenas não ser algo' refere-se a não buscarmos modelos prontos e acabados [e muitas vezes, equivocados] do que é ser um professor. Obviamente, podemos modelos inspiradores - mas sempre tomando cuidado, pois ninguém é perfeito. O que os chineses queriam dizer, penso eu, é para que você se descubra como docente, e construa seu perfil de forma autônoma. Quem sabe se isso não é muito melhor do que apenas copiar modelos outros? =)
      saudações!

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  2. É muito interessante o quanto esses ensinamentos são atuais e batem com a realidade do ensino brasileiro, ao passo em que grande parte dos professores (pelo menos os que eu particularmente tive contato) adotam uma postura de autoridade de extrema rigidez em sala de aula. Em consonância com o seu texto, como manter-se, profissionalmente falando, mais aberto às necessidades dos alunos em aula? Já que o processo para ser "um bom professor" é longo e complexo.

    Por: Jéssica Vitória Gaspar Freitas

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    1. Oi Jéssica, obrigado por sua excelente pergunta! Acho que o exercício de ser um bom professor passa por nossa empatia e desejo de realmente fazer algo pela educação e pelo mundo. Certo, pode parecer meio idealista ou irreal, mas não vejo como um ensino autoritário pode ser a solução para a formação de pessoas melhores. Por outro lado, vejo muito alunes hoje em dia ainda valorizando como 'bons' os professores carrascos, como se ser cobrado ou humilhado fosse solução de algo... Há um longo caminho, que passa pela sensibilidade, por saber ouvir os alunes, e tentar compreender o ritmo certo de cada grupo, de cada turma. É uma arte... =)
      grande abraço!

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  3. Bruce Lee, disse uma vez em entrevista, que devemos ser como a água, pois se colocarmos a água num copo, ela se torna o copo; se você colocar água numa garrafa ela se torna a garrafa. é possível ver alguma relação desse pensamento, com a pratica de formação docente e os ensinamentos chineses escritos em seu texto ?

    Ass: Arthur Luis de Vasconcelos da Costa

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    1. Oi Arthur, um comentário excelente e preciso! Bruce disse isso inspirado nos velhos sábios chineses; e essencialmente, penso que isso ainda é correto. Em cada canto, uma realidade: pra cada um, a palavra certa; a sabedoria, enfim, parecer ser a de perceber o que se precisa, e dar o que se pode dar. A própria palavra 'sábio', em chinês [sheng ren] significa algo como 'aquele que escuta'. Um docente, no meu entender - e baseado, claro, nesses mestres antigos no qual nos inspiramos - deve ouvir mais do que falar, construir do que impor, e se envolver mais do que se afastar. =)
      grande abraço!!!

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  4. A partir da passagem "Nunca, nem por um momento, uma pessoa educada se afasta da humanidade; ela se agarra a humanidade em meio às provações e em meio às tribulações". (Lunyu, 4), minha dúvida seria em como um professor, empenhado em seguir todos os ensinamentos dos pensadores supracitados, conseguiria tal feito em não ser um mau professor, trazendo esses ensinamentos para a nossa realidade? sobre quais questões, além da formação de seus alunos ele poderia se agarrar?, existiria alguma?, visto que na sociedade em que vivemos, principalmente a brasileira, o historiador é categorizado de modo descartável perante a grade de ensino e a própria comunidade, tais pensadores e seus ensinamentos realmente poderiam ser aplicados em nosso cotidiano?

    att, Pietra Ida Leone Sol

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    1. Cara Pietra, obrigado por sua pergunta. Penso que, de certa foram, esses ensinamentos já são aplicados... pois embora sejamos tratados de forma descartável por alguns [não todos], e embora ser docente pareça quase uma profissão de fé, por outro, ela implica justamente em acreditar na humanidade, e por ela lutar. Para se ter um mundo melhor, há que se acreditar que ele pode ser melhor. =)
      grato!

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  5. Boa noite professor. Quero citar uma frase bem condizente com as suas ideias “se vc só fizer o que sabe nunca será mais do que é” acho que quando tentamos algo novo ou mesmo ouvimos algo novo sempre temos algo a aprender, então existiria uma linha do quanto podemos aprender com os alunos? E até onde o senhor acha que podemos(como professor) compartilhar a aula com as ideias impostas pelos alunos em sala de aula sem que isso prejudique o ensino?
    Ass: jarbas da silva atanasio.

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    1. Oi Jarbas, agradeço esse questionamento importante.... é um jogo, de fato. Entre dar nossas aulas, e o que podemos aprender com os alunxs, os limites não são precisos, mas precisam existir - ou a gente se perde mesmo. Acho que, novamente, Confúcio fez uma analogia muito feliz da aula como uma orquestra: a gente pode reger, mas sem músicos, ela não existe. São eles que fazem tudo acontecer, e podem trazer sugestões, opções e experiências só deles, que muitas vezes podem enriquecer e abrir novos caminhos. É da dinâmica, do processo da aula, que vamos medindo isso tudo, e aprendendo também a nortear as discussões, saber voar, botar o pé no chão, etc...
      grato! =)

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