O USO DE TECNOLOGIAS NA
PANDEMIA: AS FERRAMENTAS DIGITAIS NO CURSO DE ENSINO DE HISTÓRIA E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
NO PROGRAMA FORMA PARÁ
A partir do ano de 2018, através da Secretaria de
Ciência, Tecnologia, Educação Superior, Profissional e Tecnológica (Sectet), em
parceria com universidades públicas, foi criado o programa Forma Pará, com o
objetivo de ampliar a oferta de cursos de nível superior nos diversos
municípios, interiorizando assim os cursos universitários que, em geral, ainda
são bastante concentrados em Belém, capital do Estado. Em seu primeiro ano,
foram abertos 03 cursos de História: em Mosqueiro – uma ilha turística que é um
distrito da capital, em Tucuruí – município muito conhecido por ter uma das
maiores hidrelétricas do país – e em São João de Pirabas – cidade localizada no
nordeste paraense, na chamada região do salgado, no litoral paraense. A
experiência aqui relatada ocorreu dentro da disciplina Ensino de História e
Relações Étnico-Raciais, o professor estava em Ananindeua – segunda maior
cidade do estado, pertencente à região metropolitana de Belém e a turma de São
João de Pirabas, sendo que muitos discentes residem em outros municípios da
região e, por vezes, nas áreas rurais, distantes do centro das cidades.
O projeto foi construído para ocorrer de forma
presencial, assim, a disciplina estava programada para o mês de abril de 2020,
sendo suspensa devido a grave crise sanitária ocasionada pela pandemia de
covid-19. Após um período de incertezas, a Universidade Federal do Pará (UFPA),
instituição parceira, criou o chamado Ensino Remoto Emergencial (ERE), através
do qual estudantes com dificuldades de acesso à internet passaram a receber
chips e recargas para garantir a retomada dos cursos de forma remota. Desta
maneira, coube ao professor reorganizar todo o planejamento da disciplina
(professor Ernesto Padovani Netto, autor do texto) e aos discentes uma grande
expectativa de entender como efetivamente e com qual qualidade ocorreriam às
aulas.
O curso aconteceu entre os dias 04 e 10 de dezembro
de 2020, e foi organizado da seguinte forma: Inicialmente foi criado um grupo
de WhatsApp com a turma e o professor, onde ocorreram todos os encaminhamentos
e, posteriormente, foram propostos debates com temáticas do curso; ficou
acordado que haveriam 2 horas diárias de aulas pelo Google Meet; houve a
tentativa de apresentar vídeos do YouTube durante as aulas síncronas, porém,
muitos discentes expuseram que os vídeos “travavam”, assim, assistir aos vídeos
passou a ser uma atividade assíncrona, sendo objeto de debates no WhatsApp e/ou
na aula seguinte. A culminância da disciplina ocorreu através de uma live no Facebook, na qual participaram o
professor da disciplina, um professor convidado e duas discentes do curso,
sendo que os demais estudantes assistiram e puderam se manifestar
disponibilizando comentários, assim como o público em geral. Ao atuar dentro do
chamado ciberespaço, é relevante pensar o conceito de história digital para
nortear as práticas utilizadas no curso.
Para Willian G. Thomas, a História Digital é
uma abordagem para examinar e representar o passado, empregando as novas
tecnologias da comunicação, tais como o computar, a internet e softwares. Diz ainda que a História
Digital é uma arena aberta de produção acadêmica e de comunicação, abrangendo o
desenvolvimento de novos materiais e coleções de dados acadêmicos (THOMAS apud LUCHESI; CARVALHO, 2016, p. 152).
Esta abrangência permite pensar o digital não apenas como instrumento para
otimizar o acesso a fontes históricas e ciberespaços que constroem histórias
públicas, como museus virtuais, mas também como lugar de debate, de construção
de saberes históricos a partir da interatividade nos espaços da internet.
Foi neste sentido que o curso foi montado com
05 textos bibliográficos, 05 vídeos do YouTube, 03 músicas lidas, ouvidas e
analisadas, além de um amplo material imagético organizado para a apresentação
no PowerPoint, durante às aulas. Irei selecionar alguns destes materiais para
debater a partir de agora.
Os primeiros debates ocorreram através do
vídeo “O perigo de uma história única”, palestra de Chimamanda Adichie presente no YouTube. Os
discentes assistiram de forma assíncrona e espontaneamente. Após a visualização
passaram a escrever as suas impressões no grupo do WhatsApp, gerando um debate
que foi finalizado durante o encontro síncrono no Google Meet. Isso ocorreu em
diversos momentos com outros vídeos, imagens e/ou outros materiais
jornalísticos e musicais que por dialogarem com o tema do curso, os estudantes publicavam no grupo e enriqueciam o debate. Outros
vídeos indicados foram: “Relações étnicas raciais Cultura Indígena”, “Entendendo "Brasil: uma biografia -
Capítulo 09: Preconceito, Racismo, Escravidão e Violência”, “O passado presente:
os sentidos da escravidão”, “Desfile Mangueira 2019 – Desfile Completo” e o
clipe da música “Eu sou neguinho / Pelé do Manifesto” do rapper paraense Alan Roosevelt, mais conhecido como Pelé do Manifesto. O
endereço eletrônico para acessar cada um dos vídeos citados está nas
referências, ao final do texto.
Os textos buscaram
contemplar elementos variados, como o currículo, o racismo, a temática indígena
e consciência histórica. Cada texto foi apresentado por 02 ou 03 discentes.
Durante os encontros síncronos, abria-se o debate, em que os demais estudantes
pediam para falar ou escreviam no chat do Google Meet. O professor lia os
comentários, tirava dúvidas, mediava e buscava ampliar a discussão trazendo
outras referências. Os textos debatidos foram: “Em
torno das “Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações
étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e
africana” (ABREU; MATOS, 2008), “Uma abordagem conceitual das noções de raça,
racismo, identidade e etnia” (MUNANGA, 2004), “Relações étnico-raciais,
educação e descolonização dos currículos” (GOMES, 2012), “O que não fazer no "dia do índio"
(HENRIQUE; FERNANDES, 2020) e
“Narrativas RAP e consciência histórica: um breve debate entre as rimas de Pelé
do Manifesto e a teoria de Jorn Rusen” (FERREIRA, 2018).
As músicas também tiveram um espaço destacado
no curso, 02 textos já traziam letras de canções em seus conteúdos (HENRIQUE;
FERNANDEZ, 2020) debatem “Todo dia era dia de índio” de Jorge Ben Jor,
(FERREIRA, 2018) discute “Eu sou neguinho” do rapper paraense Pelé do Manifesto
(Alan Roosevelt) e o programa trazia ainda a música “Respeitem os meus cabelos,
brancos” de Chico César. Por iniciativa de alguns estudantes, o grupo Racionais
MC’s passou a incorporar o curso, pois publicaram algumas de suas canções, do
álbum “Sobrevivendo no inferno”, no grupo de WhatsApp, o que enriqueceu os
debates.
A análise de imagens foi um exercício
constante no decorrer do curso. Assim, foram criados arquivos no PowerPoint
para debater fontes históricas imagéticas que podem ser utilizadas em sala de
aula na educação básica. Trata-se de memes, tirinhas, fotos e charges. Um dos
memes trabalhado “viralizou” na internet, nele aparece o desenho de 03 casas,
uma pegando fogo e duas pessoas com mangueiras tentando apagar, uma terceira
pessoa resolve também usar uma mangueira para molhar as outras duas casas que
não estavam em chamas, alegando que “todas as casas importam”, uma clara
referência ao movimento “vidas negras importam”, que foi criticado por um grupo
que passou a repetir “todas as vidas importam”. Foi utilizada uma tirinha do
personagem “Armandinho”, em que ele, uma criança branca, anda de bicicleta com
um amiguinho negro, de repente um policial surge, pergunta se as bicicletas eram
deles e pede a nota fiscal, Armandinho se indigna e questiona, “Mas quem iria
carregar uma nota fiscal!?” Imediatamente seu amigo negro puxa o documento e
mostra ao guarda. As fotos que foram usadas fazem referência ao universo da
branquitude da política brasileira, demonstrando como os espaços de poder no
interior do Estado são predominantemente ocupados por pessoas brancas. Assim
foram debatidas as imagens dos ministérios de diversos governos, dos ministros
do Superior Tribunal Federal em 2020, das comemorações de líderes partidários
pelas vitórias eleitorais em capitais em 2020 e dos 12 candidatos a prefeito de
Belém, sendo que nenhum era negro.
Destaco aqui a charge utilizada, uma produção
do chargista Walter Pinto, que atua na capital paraense e que é doutorando em
história pela Universidade Federal do Pará (o autor da charge autorizou por
escrito o uso dessa imagem neste trabalho). A produção circulou pelo WhatsApp e
não foi encontrada hospedada em sítios da internet, o tema é o ensino de
história:
Fonte: Walter Pintor
A charge intitulada “mudanças no ensino de
história” aborda o desconforto de grupos sociais que tradicionalmente
prevalecem no currículo da disciplina, no caso representados pela figura do
rei, branco, de origem europeia, diante da inserção de temas ligados a grupos
considerados excluídos no ensino da disciplina, como indígenas e negros, que
passaram a ser mais abordados, inclusive por força das leis 10.639/2003 e 11. 645/2008, que tornaram
obrigatório o ensino da história dos povos de origem africana e indígena no
Brasil.
Após os textos,
vídeos e imagens terem sido debatidos, a culminância do curso se deu através da
live anteriormente citada. Foi
produzido um card de divulgação, no qual se podia ler “live de encerramento da
disciplina relações étnico-raciais e ensino de história”, as fotos e as
respectivas identificações das duas discentes, do professor da disciplina e do
professor convidado. A atividade ocorreu na página “Netto Padovani”, no
Facebook.
O professor da
disciplina começou levantando uma questão para ser respondida pelo colega
convidado. O debate começou com a seguinte pergunta: “Professor, como o Senhor
avalia o desafio do ensino das relações étnico-raciais, diante de um quadro em
que dentro da noção mais clássica de que a nação foi fundada a partir de 03
grupos étnicos distintos, temos os brancos europeus sendo contemplados dentro
do currículo em toda sua ancestralidade, pelo menos desde a Grécia antiga,
apresentado como um elemento civilizador, inventivo etc. enquanto que indígenas
e afrodescendentes costumam ser estudados por recortes muito ligados ao mundo
trabalho, da escravidão, tendo suas religiões associadas ao obscurantismo e ao
culto ao demônio, tendo normalmente uma imagem negativa ou menor dentro das
narrativas construídas na sociedade e muitas vezes no próprio ensino de
história?” Em seguida o professor respondeu à questão, e o professor da
disciplina se retirou momentaneamente da live,
inserindo as duas alunas que a partir da resposta inicial e dos textos lidos,
em especial o do próprio convidado, passaram a propor um debate que se estendeu
por cerca de uma hora. Houveram ainda 15 minutos para as questões enviadas
pelos comentários de outros estudantes do curso e demais interessados no tema
que acompanharam a transmissão, totalizando cerca de uma hora e quinze minutos
de live. A atividade chegou a picos
de 50 espectadores online, e obteve 64 reações, 183 comentários, 28
compartilhamentos e apenas um dia após a transmissão já havia sido vista por
mais de 700 pessoas, alcançando 830 em fevereiro de 2021. O link para
visualização da live está disponível nas referências eletrônicas, ao final
deste texto.
A live foi muito bem avaliada nos
comentários e acabou sendo objeto de uma publicação da página da Sectet no Facebook,
que destacou a iniciativa inovadora no contexto de uma disciplina acadêmica
diante do cenário da pandemia, assim como os números acima citados.
Por fim, é
importante destacar que a turma era composta por 41 discentes, e que as
dificuldades com sinal de internet, por vezes, interferiram na participação de
todos (as) nas atividades síncronas, que costumavam ocorrer com média de 34
estudantes. Com isso, para efeito avaliativo foi levado em conta não apenas a
presença nas aulas pelo Google Meet, mas também os comentários no grupo de
WhatsApp. Houve ainda a proposição de um trabalho final escrito, cada estudante
entregou um plano de aula juntamente com um material didático sobre um tema
livre, desde que dentro da temática do curso. Este material foi enviado para o
e-mail do professor. Após a correção desta atividade final, o curso foi
encerrado com uma avaliação dos trabalhos no grupo de WhatsApp, sem citar os
nomes dos autores, o professor enumerou questões apresentadas nos textos que
julgou ser necessário debater/corrigir/ampliar, desde formatação, inadequação
de conteúdos para determinadas faixas etárias (por exemplo: uso de músicas que
contém “palavrões” em planos de aula para o sexto ano), dentre outras questões.
Os (as) estudantes manifestaram que esse retorno foi muito importante, pois
assim podiam verificar possíveis falhas para assim melhorarem no processo
acadêmico de produção textual.
Referências biográficas
Me. Ernesto Padovani Netto, doutorando em
história social da Amazônia (UFPA), professor da rede pública estadual do Pará
na modalidade educação especial e do programa Forma Pará. E-mail:
ntpadovani@gmail.com
Referências bibliográficas
ABREU, Martha; MATTOS, Hebe. Em torno das
“Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais
e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana”: uma conversa
com historiadores. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 21, n. 41, p. 5-20,
jan/jun 2008.
LUCCHESI, Anita; CARVALHO, Bruno Leal Pastor
de. “História digital: Reflexões,
experiências e perspectivas”. In: Mauad, Ana Maria, Almeida, Juniele Rabêlo de,
Santiago, Ricardo (org.). História Pública no Brasil. Letra e Voz, 2016.
FERREIRA, Rafael E. de Q.
Narrativas RAP e consciência histórica: um breve debate entre as rimas de Pelé
do Manifesto e a teoria de Jorn Rusen. In: PADOVANI NETTO, Ernesto. (org).
Historiografia e ensino de história: a sala de aula em questão. Belém, Amazônica Bookshelf, 2018.
GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais,
educação e descolonização dos currículos. Currículo sem Fronteiras, v.12, n.1,
pp. 98-109, jan/abr 2012.
HENRIQUE, Márcio Couto; FERNANDES, R. F. O que não fazer no "dia do índio". In: NUNES, Francivaldo Alves & PADOVANI
NETTO, Ernesto. História e Ensino por historiadores: Lugares, sujeitos e
contextos. Maringá, Ed. Viseu, 2020.
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual
das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Programa de educação sobre o
negro na sociedade brasileira, Niterói, [S.l: s.n.], p. 1-17, 2004.
Referências
eletrônicas
Live: Ensino de história e relações étnico-raciais:
https://www.facebook.com/netto.padovani/videos/3541377349294715.
Publicação sobre a live na página da Sectet no
Facebook: https://www.facebook.com/sectetpa/posts/2725413974364000.
TED - O perigo de uma história única - Chimamanda Adichie - Dublado em
português. 2014. 1 vídeo (18 min 48 seg). Publicado pelo canal Christiano Torreão.
https://www.youtube.com/watch?v=qDovHZVdyVQ&t=110s. Acesso em 22 de
fevereiro de 2021.
Relações étnicas
raciais Cultura Indígena. 2019. 1 vídeo (9 min 44 seg). Publicado pelo canal Marcelo Alves. https://www.youtube.com/watch?v=SBIUsrGM0X0&t=11s. Acesso em 22 de fevereiro de 2021.
Entendendo
"Brasil: uma biografia - Capítulo 09: Preconceito, Racismo, Escravidão e
Violência. 2015. 1 vídeo (13 min 51 seg). Publicado pelo canal Companhia das
Letras. https://www.youtube.com/watch?v=uPi_xMgG2qc&t=376s. Acesso em 22 de fevereiro de 2021.
O passado presente: os sentidos da escravidão. 2018. 1 vídeo (26 min 32
seg). Publicado pelo canal Nexo Jornal.
https://www.youtube.com/watch?v=DGo7j2-dd_A&t=23s. Acesso em 22 de fevereiro de 2021.
Desfile Mangueira
2019 – Desfile Completo. 2019. 1 vídeo (59 min 53 seg). Publicado pelo canal
Carnaval de Bamba. https://www.youtube.com/watch?v=F9nRZt86zbc. Acesso em 22 de fevereiro de 2021.
Eu sou neguinho /
Pelé do Manifesto. 2015. 1 vídeo (2 min 47 seg). Publicado pelo canal Pelé do
Manifesto. https://www.youtube.com/watch?v=FlnD04R_EeY. Acesso em 22 de fevereiro de 2021.
Boa noite, Ernesto. Antes de mais nada, um grande abraço de um conterrâneo seu em terras brasilienses. Ernesto, como professor de história, encarei diversas dificuldades na modalidade de ensino à distância durante os meses de setembro e dezembro na rede pública aqui de Brasília. Dito isto, é bom que fique claro que de acordo com dados oficiais do IBGE, a capital do Brasil possui acesso à internet em 92% dos lares e ainda assim, as dificuldades no sistema híbrido foram tremendas. Minha pergunta é, se na capital, onde o abismo entre a renda per capita e o acesso são abissais, quais foram as maiores dificuldades de infraestrutura que você presenciou entre os estudantes? Mesmo com todos os percalços relatados, tenho particular interesse nos dramas particulares dos interiores do estado.
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