Maura Regina Petruski

 

DO MUSEU PARA A SALA DE AULA: O ENSINO DE HISTÓRIA ATRAVÉS DE CATÁLOGOS

 

 

A pouco mais de uma década o Museu Arqueológico Nacional de Madri abriu as portas entre os dias 01 de junho à 24 de julho, para a exposição intitulada Retratos de Fayum + Adrian Paci: sin futuro visible que expôs onze retratos funerários egípcios (dez masculino e um feminino) por intermédio de uma concessão do The British Museum que deslocou as peças do seu acervo para a realização do evento, o qual proporcionou uma verdadeira viagem no tempo e espaço a uma cultura milenar que constantemente está sendo revisitada.

 

Diga-se de passagem, a fascinação pelo Egito antigo não é uma realidade que se desenvolveu somente na atualidade, senão que esteve presente como tema entre diferentes povos e temporalidades, tanto no âmbito científico quanto para o público em geral.

 

Mas, todavia, no que diz respeito à divulgação da exposição mencionada acima, como forma de buscar atrair o maior número possível de pessoas para visitá-la, diversas formas alternativas foram utilizadas, sendo o catálogo uma delas, suporte de grande relevância que, além de trazer informações a respeito do evento, também proporcionaria conhecimentos a elementos constitutivos dessa sociedade, ao mesmo tempo em que materializou-a, permitindo que outras pessoas à ela tivessem acesso depois de seu encerramento.

 

Historicamente, foi em meados do século XVIII que o recurso da utilização de catálogos começou a ser estabelecido, quando governantes de nações europeias possuidores de acervos de antiguidades buscaram garantir a posse desses objetos arrolando-os em seus inventários, registrando-os e quantificando-os para, posteriormente, apresentá-los em formato de exposição nos salões dos palácios para que todos soubessem da sua existência (BOELTER, 2019).

 

Dessa maneira, foi na trilha do colecionismo que os primeiros catálogos foram sendo estruturados e moldados como meio de divulgação, seguindo os interesses, tecnologias e mídias de época, e, desde então, não deixaram mais de serem utilizados como elemento integrante de exposições, dado esse que nos permite elevá-los a condição de documento histórico, fontes de informação e conhecimento, servindo como subsídio de estudo em diferentes áreas dentre as quais está o ensino de história.

 

Por conta disso, e convencida de que é possível ultrapassar a funcionalidade primária dos catálogos apresentada acima, bem como crendo que esses materiais possibilitam ‘gerar histórias’, encaminhando para se ‘pensar historicamente’ é que esse texto foi produzido, o qual alçou os catálogos à condição de material pedagógico, evidenciando que por seu intermédio é viável desenvolver uma metodologia educativa para as aulas de História centrada em pressupostos não pautados unicamente pelo método de aprendizagem memorialístico, recurso que por muitos anos prevaleceu como referência nesse campo do conhecimento, rompendo com a visão inserida num estudo sequêncial de causas e consequências, permitindo que o estudante tenha novas experiências formativas.

 

Com tal fim, o enfoque seguido partiu da necessidade de encaminhar o estudante a um processo educativo potencializado num conhecimento reflexivo e crítico, lendo o catálogo como um instrumento distribuidor de informação, pretendendo-se ir além da representação material projetada, adentrando num campo histórico mais abrangente ultrapassando as margens do papel estabelecidas.

 

Dessa forma, a problemática desse trabalho foi condensada em três questões: Qual a relação aluno e os catálogos de exposições? Em que consiste a função educativa dos catálogos de exposição? Como garantir que a experiência pedagógica seja significativa?

 

Entretanto, não se pode perder de vista que as proposições indicadas acima são referenciais utilizados como ponto de partida para outras derivações, uma vez que os catálogos, de maneira geral, são instrumentos que convergem para um ponto de encontro entre cultura, linguagem e técnica, mas que são representações materiais com intencionalidades construídas no planejamento da exposição, havendo a necessidade de que quando selecionados para outro fim, como no caso de um recurso alternativo para as aulas de história, é necessário de que sejam interrogados para que possam falar.

 

Ademais, as imagens nele retratadas perderam seu valor de uso e adquiram um novo, o qual se insere no campo signo-simbólico, devendo serem reconhecidos em sua nova aura, não deixando de lado a ideia de que o espaço dos catálogos experimentam uma fragmentação de olhares dirigidos, embora sejam mediadores de universos originais.

 

Assim, o que está em pauta nesse trabalho é fazer com que os alunos não sejam unicamente expectadores do exposto, mas que visualizem as imagens dos rostos que foram pintados para serem eternizados e reservados ao isolamento da escuridão das tumbas com um olhar mais apurado e instigador, chegando ao final da experiência constatando que são distintas as formas que podemos analisar os retratos funerários egípcios, sendo as apresentadas a seguir  apenas algumas dentre muitas outras que podem ser realizadas.

 

Quando os olhos se encontram

Somos conscientes de que trazer novas metodologias para as aulas de história não é uma tarefa tão simples quanto parece, haja vista que muitos alunos ainda têm a ideia de que os conteúdos da disciplina possam ser apresentados basicamente por intermédio das informações contidas nos livros didáticos e apostilas, e, quando outros recursos são trazidos para a sala de aula nem sempre são vistos como ‘aula normal’, autores como BITTENCOURT (2018) e GUIMARÃES (2018) apontam para essa interpretação.

 

Mesmo assim, não podemos desistir de buscar alternativas para chamar a atenção dos estudantes ao conteúdo da disciplina, e foi desse modo que o catálogo da exposição dos retratos funerários egípcios do Museu Arqueológico de Madri passou a servir como instrumento, corroborando na apresentação de referenciais de um segmento da história do Egito antigo.

 

Em sua composição, esse material foi construído a partir de imagens e textos informativos, e pode ser apresentado como suporte através de multimídias ou cópia impressa, permitindo que já nos primeiros momentos de visualização o professor perceba as reações dos alunos em relação ao que lhe está sendo exposto, ou seja, às suas atitudes, que podem ser dispersas ou contemplativas, motivadas ou atentas, motivadas e reflexivas, ou ainda, participativas.

 

A importância desse mapeamento estaria relacionada aos novos procedimentos que se desencadeariam, visto que o trabalho foi construído a partir de fontes secundárias, as quais auxiliariam na interpretação e argumentação de conteúdos históricos, valendo-se de que muitos alunos possivelmente desconhecem o processo de análise documental utilizada na disciplina.       

 

Dando sequência ao método de indagação com questões mais pontuais busca-se saber qual o alcance dos alunos referente aos retratos funerários e as interfaces que esses objetos tem na história do Egito antigo.  Desse modo, uma espécie de tabela catalográfica sobre esse artefato seria preenchida, que, para o caso desse trabalho os pontos selecionados foram: análise morfológica, análise técnico-construtivo, e, por último, a análise funcional.

 

Iniciando o preenchimento das informações relacionadas a primeira categoria, ou seja, a analise morfológica, os aspectos constantes seriam: pequenas placas de madeira em que os rostos dos indivíduos foram pintados na posição frontal aparecendo parte do pescoço, porém, numa proporção menor também o colo.

 

O tamanho das peças alternava-se entre 12 a 25cm de largura por aproximadamente 2mm de espessura, ocorrendo pequenas variações nessa metragem (GUERRERO, 2001). O que justifica essa proporção é o fato de que deveriam ajustar-se o mais próximo possível do formato da cabeça do corpo mumificado, pois sob ela que a lâmina seria colocada. Outra forma de feitio da pintura foram as realizadas diretamente sobre o tecido de linho que cobria o corpo, uma espécie de mortalha, sem a intermediação de outro material, como, por exemplo, a lâmina de madeira, entretanto, proporcionalmente, a segunda tendência foi utilizada em número menor quando comparada com a primeira.

 

Relativo ao formato das unidades, pode-se dizer que não seguiam regra fixa, uma vez que foram encontradas com diferentes recortes nas bordas, umas com a configuração de meia lua apenas na parte superior, outras, na inferior, ou, ainda, nas duas. Também tivemos as que apresentavam somente o contorno em linhas retas.

 

Embora prevaleça diversidade na caracterização da produção das telas, elas convergem para uma unicidade em três aspectos: não foram representadas sorrindo, os olhos redondos e bem salientes, e, por último, o olhar intenso e distante.

 

Seguindo para o segundo espaço da tabela estabelecido para a observação temos a análise técnica construtiva, que responderá questões de como os artefatos foram feitos bem como os materiais empregados para a confecção.

 

Em primeiro plano há que se dizer que a madeira era a matéria-prima que serviria de suporte às pinturas, sendo selecionada a partir de espécies que deveriam ser de cedro, pinho, tília ou sicômoro figueira, cuja extração se daria em sentido vertical em finas lâminas.

 

Quanto a execução técnica da pintura o procedimento que predominou para a elaboração era da encáustica, método bastante utilizado no mundo clássico “que consistia em mesclar os pigmentos com cera de abelha quentes, dessa forma, se conseguia que o pigmento se fundisse na cera e ao secar sobre a madeira se produzia um acabamento de grande duração” (MARÌN, 995, p.37).

 

De acordo com Sofía Macarena Argandona,

“ Na técnica de cera quente, a cera de abelha, mesclada com pigmentos, se usa em estado líquido. O assunto levantou muitas controversas, mas parece que a cera de abelha pode ser pura ou mesclada com outras substâncias. É possível que a cera pura foi parcialmente utilizada em alguns retratos. Um dos argumentos encontrados é que se esfria com muita rapidez e se faz imanejável quando se toca a madeira [ ]. Dizem que a composição exata da cera de abelha continua em desacordo. As principais teorias dizem que a cera era usada quente em seu estado puro, ou mesclada com resinas e pigmentos; ou se aplicava fria depois de moída, com um processo conhecido como esponjamento, que permitia mescla-la com pigmentos de cores, ovos ou óleo. De todos os modos, somente analisando é que se pode dizer qual dos retratos foi realizado com cera quente ou de fria” (ARGANDONA, 2021, p. 37).

 

Para a autora,

“A diversidade de técnicas utilizadas no corpus documental do Fayum. A sutileza e aspereza, as figuras observadas nos retratos atestam a idiossincrasia de cada pintor individual; Apesar de que são obras sem assinatura, é visível nos traços de pincel e as marcas de ferramentas, o punteado na cera grossa dos rostos antigos, e a aplicação da pintura de encáustica nos retratos mais magistrais mostra a semelhança com a pintura a óleo. Portanto, não é de se estranhar que os retratos tenham sido comparados com o trabalho dos impressionistas [  ]. As ricas texturas das cores e a grande variedade de estilos individuais revelam a presença de indivíduos únicos tanto dos pintores como dos sujeitos” (ARGANDONA, 2021, p. 37).

 

A preservação desses frágeis objetos teve nas questões climáticas um ponto favorável, visto que a secura da região salvaguardou exemplares que compõem parte do conjunto artístico dessa sociedade. Como não é possível saber a quantidade dos artefatos fabricados, podemos ter surpresas pela frente, haja vista que muitos outros poderão ser encontrados sob as areias do deserto ou os palmos de terra. Dando sequência ao terceiro ponto, a análise funcional, que no caso dos retratos era funerária. Esse objeto fazia parte do conjunto das crenças da religiosidade egípcia, utilizado como elemento de identificação do corpo coberto por faixas de linho para que, quando estivesse percorrendo o caminho que o levaria ao Além, a vida pudesse retornar.

 

Diante dessa atribuição que lhe havia sido destinada, presume-se que os retratos assumiram grande função na última etapa terrena dos indivíduos, que eles não eram simples adereços produzidos como adornos para serem colocados no interior das tumbas junto ao cadáver unicamente para comporem o conjunto do ambiente mortuário, nem somente classificados como mais um objeto inserido na perspectiva da arte egípcia, em razão de que eram peças muito mais valorosas e significativas, pois representavam um sentido forte e original do término de uma vida.

 

Com efeito, por seu intermédio, e de como foi utilizado no decorrer do I ao IV século d.C., nos oportuniza a refletir a respeito das diferentes formas de interpretação da morte a partir da sociedade egípcia, observando as ambiguidades e crenças, pois através delas buscava-se a suspensão do tempo convertendo-a em imagem definitiva e eternizada.

 

Em suma, com esse breve trabalho pretendeu-se introduzir o leitor a uma proposta de análise a respeito de um tema que testemunha a grandiosidade de um traço da cultura da sociedade egípcia, que ele possa ter sido o começo de muitas outras investigações, não somente por parte da autora, mas, também, daqueles que se dedicaram a sua leitura.

 

Referências Biográficas

Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Integrante do corpo docente da pós-graduação do Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

 

Referências Bibliográficas

ARGANDONA, Sofía Macarena. La Encáustica. Estudio y Recreacion técnica a partir de los retratos de El Fayum. (Grado em Conseervación y Restauración de Bienes Culturales 2020/2021). Universidad de La Laguna. 2021.

 

BITTENCOURT, Circe Fernandes. Reflexões sobre o ensino de História. Ensino de Humanidades Estudos Avançados. N.32, May-Aug. 2018, p.127-149.

 

BOELTER, Valéria. Os catálogos de exposição associados à experiência museográfica. In: SANTOS, Nara Cristina (Org), Arte Contemporânea: ações expositivas e estratégias museais. Santa Maria-RS. Ed PPGART, 2019.

 

GUERRERO, Consuelo Isabel Caravaca. Problemática de estúdio en el caso de los retratos de El-Fayum. Antiguedad y Cristianismo, N.38, 2001, p. 17-32

 

GUIMARÂES, Selva. Ensino de História e Cidadania.  Campinas: Papirus,  2018.

 

MARÍN, F. J. (1995). Pintura a la encáustica, 2022. Disponível em http://hdl.handle.net/10481/14373.

8 comentários:

  1. FERNANDA FRANCO ALVES AZEVEDO14 de setembro de 2022 às 10:32

    Parabéns pelo artigo. Sobre o uso dos catálogos de museus e exposições no ensino de História, sugiro o seguinte questionamento: como você introduziria este material em sala de aula para obter um retorno dos alunos? Fernanda Franco Alves Azevedo.

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    1. Olá Fernanda! Obrigada pela sugestão, propostas novas sempre são muito bem vindas.
      Abc

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  2. Parabéns pelo trabalho! Importante o apontamento sobre o uso de novas metodologias no ensino de História pois essa disciplina ainda pode ser vista como uma disciplina de memorização como foi frisado, ou como eu mesma já ouvi relatos de alunos como uma disciplina que "escreve demais" gosto bastante da temática dos museus e é útil para se introduzir aos alunos algo mais visual, principalmente com as crianças. É válido expor catálogos de museus para os alunos e ir mostrando a importância dos artefatos para o conhecimento sobre o passado. Você acha que seria possível, dentro das limitações, realizar a produção de um "museu" com os alunos onde eles se encarregariam de trazer para exposição algum item antigo e explicar sua antiga funcionalidade?
    Jackiely de Lima Feitosa

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    1. Olá Jackiely, obrigada por ler o texto! Acho extremamente válido, mas é preciso que se tenha uma quantidade compatível de objetos sobre o tema para que chame a atenção para a atividade. Os alunos geralmente agarram essas oportunidades de organização de atividades expositivas. Espero que você coloque em prática e que colha resultados positivos.
      Abc Maura

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  3. Parabéns pela atividade criativa. Prof. Dr. Carlos Campos - UFMS

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  4. Olá Professor! Obrigada por ler o texto, estamos tentando inovar em sala de aula.
    Abc

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  5. Parabéns pelo trabalho, texto muito interessante. Como se tem discutido atualmente diferentes formas de ensinar além dos livros didáticos e apostilas é muito importante métodos como esse, mas um questionamento: como trazer tais métodos para professores que ainda estão 'presos' aos livros apenas?
    Lara Karinina Viana de Almeida

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  6. Olá Lara, obrigada por ler meu texto!
    A mudança de postura por parte dos docentes não algo que vai ocorrer de forma rápida, eventos como o que você está participando faz com que outros professores tenham acesso a nova metodologias.

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